Superior Tribunal de Justiça Reconhece Limites e Direitos à Proteção Jurídica do Nascituro

Por Dr. Wander Barbosa em

Numa breve análise, cumpre observar que a proteção jurídica do nascituro possuí bastante relevância no âmbito do Direito para toda à sociedade, isto porque o Direito só existe em razão da existência do ser humano. Ao tempo recente, a proteção da dignidade da pessoa humana tornou-se uma necessidade imediata, diante das constantes invenções científicas em vastas áreas do conhecimento.

Falar dos direitos do nascituro é falar além de uma mera expectativa de direito, é falar de direitos desde a sua concepção. Neste ínterim, diante dessa realidade, os direitos da personalidade tornaram-se tema de grande importância, alcançando posição de destaque tanto na doutrina quanto nas legislações.

Neste sentido, a Lei 10.406/02, o Código Civil Brasileiro, conferiu-lhe tratamento especial á este tema, dedicando 11 artigos agrupados em um capítulo, denominado “Dos Direitos da Personalidade”, passando a adotar a noção dos direitos da personalidade como sendo inatos, absolutos, vitalícios e oponíveis erga omnes.

Ainda que o artigo 2° do Código Civil condicione a aquisição de personalidade jurídica ao nascimento, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece e concede ao nascituro uma categoria especial de direitos que abrangem situações jurídicas destinadas a garantir o desenvolvimento digno e saudável no meio intrauterino e o consequente nascimento com vida, no entanto, não há uma delimitação expressa do rol de tais direitos.

Atualmente são três as correntes doutrinárias que buscam indicar o caminho da proteção jurídica devida àqueles que ainda não nasceram, vejamos:

  1. Corrente Natalista, defende que a titularização de direitos e a personalidade jurídica são conceitos inexoravelmente vinculados, de modo que, inexistindo personalidade jurídica anterior ao nascimento, a consequência lógica é que também não há direitos titularizados pelo nascituro, mas mera expectativa de direitos.
  2. Corrente da Teoria Concepcionista, esta corrente entende que a personalidade jurídica se inicia com a concepção, muito embora alguns direitos só possam ser plenamente exercitáveis com o nascimento, como os decorrentes de herança, legado e doação.
  3. Corrente da Teoria da Personalidade Condicional, que entende que a personalidade tem início com a concepção, ficando submetida a uma condição suspensiva “o nascimento com vida”, assegurados, no entanto, desde a concepção, os direitos da personalidade, inclusive para assegurar o nascimento.

Direito à vida

Nesta análise, o STJ, ao reconhecer o direito de uma mulher de receber o seguro DPVAT após sofrer aborto em decorrência de acidente de carro, o relator do recurso ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, esclareceu que o ordenamento jurídico como um todo, e não apenas o Código Civil de 2002, Lei nº 10.406, alinhou-se mais à teoria concepcionista para a construção da situação jurídica do nascituro.

Em seu voto no REsp 1.415.727, o ministro ressaltou que é garantida aos ainda não nascidos a possibilidade de receber doação conforme aludido no artigo 542 do CC, e de ser curatelado, diante do artigo 1.779 do CC, além da especial proteção do atendimento pré-natal, conforme disposto no artigo 8° do Estatuto da Criança e do Adolescente. O relator ainda citou as disposições do Código Penal, no qual o crime de aborto é alocado no título referente a “crimes contra a pessoa”, no capítulo dos “crimes contra a vida”.

“Mesmo que se adote qualquer das outras duas teorias restritivas, há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante”, afirmou.

Para ele, garantir ao nascituro expectativas de direitos – ou mesmo direitos condicionados ao nascimento – “só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais”.

Seguro DPVAT

Salomão destacou que, mesmo em sua literalidade, o Código Civil não mistura os conceitos de existência da pessoa e de aquisição da personalidade jurídica. De acordo com o ministro, ainda que não se possa falar em personalidade jurídica, é possível falar em pessoa. “Caso contrário, não se vislumbraria nenhum sentido lógico na fórmula ‘a personalidade civil da pessoa começa’ se ambas, pessoa e personalidade civil, tivessem como começo o mesmo acontecimento.”

Ao analisar o caso concreto, o relator avaliou que o artigo 3° da Lei 6.194/1974 garante indenização por morte; assim, “o aborto causado pelo acidente subsume-se à perfeição ao comando normativo, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina”.

O ministro ressaltou que a solução apresentada está alinhada com a natureza jurídica do seguro DPVAT, uma vez que a sua finalidade é garantir que os danos pessoais sofridos por vítimas de acidentes com veículos sejam compensados, ao menos parcialmente.

Em 2010, o mesmo entendimento já havia sido aplicado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Ao proferir o voto vencedor no REsp 1.120.676, ele concluiu que “a interpretação mais razoável desse enunciado normativo da Lei 6.194/1974, consentânea com a nossa ordem jurídico-constitucional, centrada na proteção dos direitos fundamentais, é no sentido de que o conceito de ‘dano-morte’, como modalidade de ‘danos pessoais’, não se restringe ao óbito da pessoa natural, dotada de personalidade jurídica, mas alcança, igualmente, a pessoa já formada, plenamente apta à vida extrauterina, embora ainda não nascida, que, por uma fatalidade, acabara vendo a sua existência abreviada em acidente automobilístico”.

Na ocasião, os ministros da Terceira Turma reconheceram que era devido o pagamento do seguro DPVAT a um casal em virtude de aborto sofrido pela mulher quatro dias após acidente de trânsito, quando ela estava com 35 semanas de gestação.

Erro em exame

A jurisprudência do STJ possibilita ao nascituro a indenização por danos morais, os quais devem ser decorrentes da violação da dignidade da pessoa humana, desde que, de alguma forma, comprometam o seu desenvolvimento digno e saudável no meio intrauterino e o consequente nascimento com vida, ou repercutam na vida após o nascimento.

A partir desse entendimento, a Quarta Turma estabeleceu que uma menina, à época dos fatos na condição de nascitura, não tinha direito à indenização por danos morais em virtude da realização de exame de ultrassonografia cujo resultado, erroneamente, indicou que ela teria síndrome de Down. Tanto o centro radiológico responsável pelo exame quanto a operadora do plano privado de saúde foram condenadas solidariamente a pagar indenização aos pais da criança.

O relator do REsp 1.170.239, ministro Marco Buzzi, ressaltou que há um “inequívoco avanço, na doutrina, assim como na jurisprudência, acerca da proteção dos direitos do nascituro. A par das teorias que objetivam definir, com precisão, o momento em que o indivíduo adquire personalidade jurídica, assim compreendida como a capacidade de titularizar direitos e obrigações, é certo que o nascituro, ainda que considerado como realidade jurídica distinta da pessoa natural, é, igualmente, titular de direitos da personalidade (ao menos reflexamente)”.

Com base no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, destacou o ministro, é permitido ao magistrado conferir, em cada caso concreto, proteção aos bens da personalidade, consistentes na composição da integridade física, moral e psíquica do indivíduo, compatível com o contexto cultural e social de seu tempo.

Ao citar precedentes do STJ no sentido de conceder indenização por danos morais ao nascituro, o ministro Buzzi observou que não é toda situação jurídica que ensejará o dever de reparação, “senão aquelas das quais decorram consequências funestas à saúde do nascituro ou suprimam-no do convívio de seus pais ante a morte deles”.

No caso julgado, o relator ressaltou que, segundo os fatos reconhecidos pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a mãe, no dia seguinte ao recebimento do resultado do exame que trazia a equivocada informação quanto à síndrome cromossômica, submeteu-se novamente ao mesmo exame, cujo resultado foi diverso. “Não se olvida, tampouco se minimiza, o abalo psíquico que os pais suportaram em virtude de tal equívoco – dano, contudo, que não se pode estender ao nascituro, na esteira dos precedentes desta Corte Superior”, afirmou.

“Portanto, não há falar em dano moral suportado pelo nascituro, pois, dos contornos fáticos estabelecidos pelas instâncias ordinárias, sobressai clarividente que tal erro não colocou em risco a gestação, e tampouco repercutiu na vida da terceira autora [a filha], após seu nascimento”, concluiu.

Indenização equivalente

Outrossim, quando há o dever de reparação, o valor devido ao nascituro não pode ser inferior pela condição de não ter ainda nascido, neste ínterim, ao negar provimento ao pedido de uma empresa condenada por danos morais e materiais pela morte de um empregado em virtude de acidente de trabalho, a Terceira Turma manteve a fixação da indenização em montante igual, tanto para os filhos nascidos da vítima quanto para o nascituro.

A relatora do REsp 931.556, ministra Nancy Andrighi, explicou que a compensação financeira do dano moral é feita “a partir de uma estimativa que guarde alguma relação necessariamente imprecisa com o sofrimento causado, justamente por inexistir fórmula matemática que seja capaz de traduzir as repercussões íntimas do evento em um equivalente financeiro”.

A ministra destacou que, entre as razões adotadas no arbitramento do dano moral, são levados em consideração fatores como culpa ou dolo, posição social do ofendido, risco criado, situação econômica do ofensor, mas principalmente a gravidade da ofensa ou a potencialidade lesiva do fato, o que, para ela, confere à análise do dano moral um mínimo de objetividade, em contraste com o subjetivismo da discussão sobre a extensão íntima da dor sofrida.

Para Nancy Andrighi, diferentemente do abalo psicológico sofrido, que não é quantificável, a gravidade da ofensa suportada pelos filhos nascidos e pelo nascituro à época do falecimento é a mesma. Em seu voto, ressaltou que, para dizer que a dor do nascituro é menor, conforme argumentou a empresa, seria necessário, antes, dizer que é possível medi-la.

Verifica-se que uma diminuição do valor indenizatório fixado em relação ao nascituro é, portanto, uma tentativa de se estabelecer um padrão artificial de ‘tarifação’ que não guarda relação alguma com a origem fática do dever indenizatório, porto relativamente seguro onde a jurisprudência costuma repousar sua consciência na difícil tarefa de compensar um dano dessa natureza”, disse.

A relatora ponderou que, se fosse possível mensurar o sofrimento decorrente da ausência de um pai, ela se arriscaria a dizer que “a dor do nascituro poderia ser considerada ainda maior do que aquela suportada por seus irmãos, já vivos quando do falecimento do genitor. Afinal, maior do que a agonia de perder um pai, é a angústia de jamais ter podido conhecê-lo, de nunca ter recebido dele um gesto de carinho, enfim, de ser privado de qualquer lembrança ou contato, por mais remoto que seja, com aquele que lhe proporcionou a vida”.

Alimentos gravídicos

Acrescento ainda, que em 2017, a Terceira Turma estabeleceu que os alimentos gravídicos, destinados à gestante para cobertura das despesas no período compreendido entre a gravidez e o parto, devem ser automaticamente convertidos em pensão alimentícia em favor do recém-nascido, independentemente de pedido expresso ou de pronunciamento judicial. Essa conversão é válida até que haja eventual decisão em sentido contrário, em ação de revisão da pensão ou mesmo em processo em que se discuta a própria paternidade.

O entendimento do colegiado foi aplicado em julgamento de recurso no qual o suposto pai defendeu a impossibilidade jurídica de pedido de execução de alimentos gravídicos, já que, com o nascimento da criança, teria sido extinta a obrigação alimentar decorrente da gestação. Segundo ele, as parcelas da pensão também deveriam ser suspensas até que houvesse o efetivo reconhecimento da paternidade (o número do processo não é divulgado em razão de segredo judicial).

Em análise da Lei 11.804/2008, que regula a matéria, o ministro relator, Marco Aurélio Bellizze, esclareceu inicialmente que os alimentos gravídicos não se confundem com a pensão alimentícia, pois, enquanto esta última se destina diretamente ao menor, os primeiros têm como beneficiária a própria gestante.

Em seu voto, citou as lições de Patrício Jorge Lobo Vieira, para quem alimentos desse tipo podem ser compreendidos como “aqueles devidos ao nascituro e recebidos pela gestante, ao longo da gravidez, reconhecendo-se uma verdadeira simbiose entre os direitos da própria gestante e do próprio nascituro, antes mesmo do seu nascimento”.

Todavia, segundo o ministro, o artigo 6º da lei é expresso ao afirmar que, com o nascimento da criança, os alimentos gravídicos concedidos à gestante serão convertidos em pensão alimentícia, mesmo que não haja pedido específico da mãe nesse sentido.

Tal conversão automática não enseja violação à disposição normativa que exige indícios mínimos de paternidade para a concessão de pensão alimentícia provisória ao menor durante o trâmite da ação de investigação de paternidade. Isso porque, nos termos do caput do artigo 6º da Lei 11.804/2008, para a concessão dos alimentos gravídicos já é exigida antes a comprovação desses mesmos indícios da paternidade”, destacou o relator.

De acordo com o ministro Bellizze, com a alteração da titularidade dos alimentos, também será modificada a legitimidade ativa para a proposição de eventual execução.

Isso significa que, após o nascimento, passará a ser o recém-nascido a parte legítima para requerer a execução, seja da obrigação referente aos alimentos gravídicos, seja da pensão alimentícia eventualmente inadimplida. Nessa linha de raciocínio, o nascimento ocasionará o fenômeno da sucessão processual, de maneira que o nascituro (na figura da sua mãe) será sucedido pelo recém-nascido”, concluiu o ministro ao negar o recurso especial do suposto pai.

Diante do exposto apresentado, como advogado especialista no Direito de Família, Direito Cível, dentre outras ramificações do Direito brasileiro, como se pode notar, por qualquer ângulo que se medite sobre a questão, destaca-se a manifesta relevância do maior debate científico sobre o papel da jurisprudência, inserida na esfera mais ampla do Direito, em seu objetivo, essencial, de disciplinar as relações sociais. Sendo assim, a jurisprudência apresenta relevância cada vez mais acentuada no Direito.

Pode ser entendida como o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, proferidas para a solução judicial de conflitos, envolvendo casos semelhantes. Nesse sentido, jurisprudência é “a forma de revelação do Direito” resultante do exercício da jurisdição, decorrente de uma “sucessão harmônica de decisões dos tribunais”, assim como se viu a importância da jurisprudência na formação do Direito é notória nos dias atuais, ao interpretar e aplicar as normas jurídicas.

Por muitas vezes ela acaba inovando em matéria jurídica, estabelecendo normas concretas que se diferenciam daquelas estritamente previstas nas leis, ao interpretar e aplicar diferentes preceitos normativos de forma lógica e sistemática. Essa “função normativa” da jurisprudência é mais acentuada nos casos de lacuna, ou seja, omissão de lei expressa para o caso específico, bem como quando a lei autoriza o juiz a decidir por equidade.

Por fim, o Direito “criado” pela jurisprudência tem a sua obrigatoriedade restrita ao caso em que proferida a decisão, mas também serve como parâmetro para outros julgamentos, envolvendo questões iguais ou semelhantes, como também exerce o importante papel de atualizar as disposições legais, tornando-as compatíveis com a evolução social.

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