ESTUPRO DE VULNERÁVEL E A TEORIA DAS FALSAS MEMÓRIAS

Por Dr. Wander Barbosa em

A FRAGILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL COM BASE NA TEORIA DAS FALSAS MEMÓRIAS

Autoria :  Ângelo Maciel Santos Reis  Luísa Gualberto Dourado

RESUMO

A prova testemunhal é a mais utilizada nos processos criminais como meio de prova, contudo, é também a mais frágil, seja pela incidência de fatores como o tempo, gerando o esquecimento de lembranças ou, até mesmo, pela incidência do fenômeno das falsas memórias. O artigo então, se propõe a explicar tal fenômeno, e como ele afeta os processos criminais, além de apresentar possíveis soluções para tal problema.

Palavras-chave: Falsas memórias. Prova testemunhal. Processo Penal. Fragilidade.

 

ABSTRACT

The testimonial evidence is the most used in criminal proceedings as a means of proof. However, it is also the most fragile, either by the incidence of factors such as time, generating the forgetfulness of memories or even by the incidence of the phenomenon of false memories. The article then proposes to explain this such phenomenon, and how it affects the criminal processes, besides presenting possible solutions to such problem.

Keywords: False memories. Testimonial evidence. Criminal proceedings. Fragility.

 

1  INTRODUÇÃO

 O presente texto tem o condão de analisar a influência das falsas memórias e suas possíveis máculas no processo penal brasileiro, ao passo em que tenta compreender o funcionamento dos mecanismos de consolidação das memórias humanas e como elas sofrem, de algum modo, distorções com o tempo. Além disso, propõem-se possíveis soluções para a oitiva de testemunhas e vítimas, reputadas essenciais para a produção da prova testemunhal.

Sabe-se que o processo penal deve sempre prezar pela efetivação da verdade real. Entretanto, ele em si mesmo não se perfaz como instrumento suficiente para alcançá-la, uma vez que a supramencionada verdade real, pelo menos sob um prisma filosófico sobre o processo penal, é uma construção a ser edificada pelas provas admitidas pelo ordenamento pátrio. É por isso que para se condenar alguém, será necessária ao julgador a constatação das provas substanciais acerca da autoria e materialidade delitivas, o que pode ser alcançado por meio da inquirição de vítima e testemunhas, como ocorre na maioria dos casos.

Os Tribunais Superiores Pátrios costumam entender que a palavra da vítima pode ser suficiente para embasar a condenação do réu num processo criminal, desde que ela esteja em consonância com outros elementos do processo. Destarte, a existência de crimes que podem não deixar vestígios, como o estupro (art. 213 do Código Penal – CP), que atentam contra a dignidade sexual da vítima, e em muitas vezes, o crime consiste apenas na prática de carícias, o que impossibilitará a constatação dos vestígios pelo exame de corpo de delito (art. 158 e seguintes do Código de Processo Penal – CPP), tal lacuna, muitas vezes necessária para a condenação do verdadeiro autor do delito, dá margens para que ocorra o fenômeno das falsas memórias, pois o cérebro humano é um órgão tão complexo que continua a desafiar a medicina e a ciência.

O tema falsas memórias é ainda considerado como algo novo para muitos estudiosos e profissionais da área jurídica, haja vista se tratar de um assunto transdisciplinar, já que perpassa por diversas áreas do conhecimento científico, em especial a Psicologia, a Medicina e o Direito.

Nesta mesma oportunidade, será apresentado também um caso que ocorreu no Brasil, o da Escola Base, no qual houve a incidência das falsas memórias e quais foram os seus desfechos jurídicos.

A investigação acadêmica será eminentemente através de fontes bibliográficas, com a exploração exaustiva de obras sobre o tema, e o aporte teórico será construído a partir das contribuições de conhecidos autores do direito processual penal, principalmente da obra de Cristina di Gesu, Prova Penal e Falsas Memórias.

 

2  CONCEITOS INICIAIS

 

Ainda que o processo penal esteja dotado de autonomia científica, este deve ser compreendido de modo “a conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios e o caminho para materializar a aplicação da pena ao caso concreto” (ALENCAR; TÁVORA, 2016, p. 48), e nas palavras de De Lima (2015) a importância do processo penal se sobressai como instrumento do qual se vale o Estado para a aplicação da sanção penal ao possível autor do fato delituoso. Dito isso, pode-se falar que a prova é a ferramenta utilizada pelas partes do processo para a comprovação dos fatos alegados, que fundamentarão o exercício da tutela

 

jurisdicional (KUENTZER, 2015). E, nos ensinamentos de Pacelli (2017) a prova no processo penal deve reconstruir a realidade histórica, revelando-se a verdade dos fatos, com o objetivo de formar a coisa julgada. Já Lopes Jr.(2013), em síntese relata que as provas, nada mais são do que os instrumentos por meio dos quais será reconstruído o crime, com a finalidade de instruir o juiz para o julgamento.

Esse caminho utilizado pelo juiz para a formação de sua convicção, estabelecendo a verdade dos fatos é conhecido como meios de prova, os quais podem ser previstos ou não em lei e serem usados direta ou indiretamente pelo magistrado (RANGEL, 2016).

Assim, dispõe o art. 155 do Código de Processo Penal que o juiz não poderá fundamentar sua decisão apenas e exclusivamente nos elementos colhidos na fase indiciária, devendo a prova ser então, produzida em juízo, pois serão observados os princípios constitucionais da ampla defesa e o contraditório (art. 5º, inc. LV da CF/88). Com exceção das provas cautelares não repetíveis e antecipadas, como exemplo do exame de corpo de delito, Rangel (2016) ensina que, a natureza jurídica da prova constitui um direito subjetivo de cunho constitucional, com o objetivo de indicar a verdade dos fatos. Pois o Ministério Público é o titular da ação penal, o qual, em regra, irá oferecê-la sempre que houver indícios de autoria e materialidade de algum delito, sendo oportunizado ao réu o direito de se defender das acusações. Isso sem se olvidar dos vários princípios que norteiam a prova, como a presunção de inocência, da garantia da jurisdição, contraditório, ampla defesa, in dubio pro reo, princípio dispositivo e outros que possibilitam a prática do devido processo legal.

3  A PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL

 Após o breve apanhado acima, é de bom alvitre esclarecer que o propósito deste trabalho não é dissecar todos os meios de prova em espécie dispostos no Código de Processo Penal, mas sim, priorizar aqueles mais pertinentes à temática aqui apresentada, sendo eles: a prova testemunhal e as próprias palavras da vítima. Não obstante, as demais provas em espécie que deixarão de ser abordadas, mesmo dotando de alta relevância na prática processual criminal, não serão analisadas nesta oportunidade em razão do recorte temático.

As perguntas ao ofendido, ou seja, à vítima constituem meios de prova, tendo previsão no artigo 201 do diploma processual penal. Não se deve confundir vítima com testemunha, tão logo que a disciplina dessa última está disposta no capítulo seguinte ao do ofendido no Código de Processo Penal. Ademais, a vítima não tem o compromisso de dizer a verdade, e caso minta, não será responsabilizada pelo crime de falso testemunho (art. 342 do Código Penal), mas sim, por denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal) (DE LIMA, 2015).

De Lima (2015) acrescenta que o valor probatório das declarações prestadas pela vítima é relativo, mesmo quando há a prática de crimes contra a dignidade sexual, que, na maioria das vezes, não deixam vestígios e não há testemunhas presenciais do fato.

A prova mais utilizada nos processos criminais é a prova testemunhal, com previsão do artigo 202 ao artigo 225 do diploma processual penal, tendo sua natureza jurídica definida como meio de prova. Genericamente, pode-se conceituar a testemunha como a pessoa que presta depoimento de forma imparcial sobre um fato, de que viu ou ouviu falar (NUCCI, 2015).

Apesar de ser a prova mais usada no processo penal, é a prova testemunhal reconhecidamente considerada a mais frágil (PACELLI, 2017), por razões que serão tratadas em tópico específico. Convém, outrossim, tecer breves esclarecimentos sobre os pontos mais importantes acerca desse meio de prova.

A testemunha presta compromisso de dizer a verdade (art. 203 do Código de Processo Penal), sob pena de responder pelo crime de falso testemunho (art.342 do Código Penal), devendo o juiz, antes de tomar seu depoimento na audiência de instrução, juramentá-la, alertando-a sobre a possibilidade de cometer a infração acima. Quem não presta  compromisso, não é considerado testemunha, mas sim mero informante, que é a pessoa que apenas presta informações sem a obrigação de ser imparcial. É o caso, por exemplo, das pessoas elencadas no artigo 206 do mesmo código processual, que são os parentes próximos e amigos íntimos do acusado (NUCCI, 2015).

Já os parentes da vítima, adverte Alencar e Távora (2016), estão obrigados a depor prestando compromisso, inclusive, sob pena de responder por falso testemunho.

O depoimento prestado pela testemunha na fase indiciária deve ser repetido na fase processual, pois, é nesta fase que serão observados os princípios da ampla – defesa e o contraditório(ALENCAR; TÁVORA, 2016).

Por ser o testemunho um dever, a testemunha que foi devidamente intimada deixar de comparecer sem justificativa ao juízo no dia da audiência, poderá ser conduzida coercitivamente, conforme artigo 218 do diploma processual, e ainda arcar com os custos da diligência, como dispõe o art. 458 c/c art. 436, §2º do mesmo diploma legal (ALENCAR; TÁVORA, 2016).

Estando a testemunha impossibilitada de comparecer em juízo, seja por enfermidade ou velhice, será esta inquirida onde estiver, é o que reza o artigo 219 do código processual penal. Caso a testemunha resida em outra comarca e não seja possível o seu deslocamento até a sede do juízo, será feita sua inquirição por carta precatória (ALENCAR; TÁVORA, 2016).

 

4  FALSAS MEMÓRIAS E A FRAGILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL

 Sabe-se que o processo penal busca a verdade real, princípio esse que almeja a reconstituição no processo judicial dos fatos históricos, ou seja, a reconstituição do próprio crime. Mas como reconstruir esse fato criminoso que ocorreu no passado, num processo criminal, sendo que ele não mais existe? (MACHADO, 2014). A resposta para isso está na reconstrução por meio das provas, sendo que a prova testemunhal é a mais fácil e a mais utilizada, e ela depende justamente, da memória.

Não obstante, mesmo essa reconstrução com a reunião dos depoimentos de vítimas, testemunhas e acusados, e ainda de provas técnicas, não será possível a reprodução do fato da mesma maneira de como aconteceu na realidade, pois, as provas são apenas fragmentos de um todo e a percepção dos envolvidos é parcial (DI GESU, 2014).

O neurocientista Sigman (2017) esclarece que até a visão está cheia de ilusões, e acreditamos fielmente de que o que estamos vendo é a retratação da realidade. Isso porque a memória, a imagem e o som são codificados ou armazenados pelo córtex visual, por neurônios que recebem informações da retina e de outras regiões do cérebro, formando então a percepção do que se está vendo, e essa percepção se assemelha mais a uma pintura do que uma fotografia, ou seja, o que vemos nada mais é do que a interpretação de informações recebidas.

Então, como garantir essa “verdade”, que de alguma forma será a verdade de cada um dos sujeitos processuais? A frase que intitula a obra de Luigi Pirandello, Assim é (se lhe parece) traduz muito bem a concepção de que a verdade não existe.

Ultrapassando o mito da busca da verdade real, tem-se também o tempo como inimigo do processo. O esquecimento é um fenômeno fisiológico, e em não sendo colhida a prova oral em tempo hábil, corre-se um risco muito grande de ocorrer o esquecimento da lembrança ou de impregná-la de vícios. Para evitar que um processo se delongue demais no tempo, ou que transcorra rapidamente, a Constituição Pátria prevê em seu art. 5º, inc. LXXVIII a razoável duração do processo e a sua celeridade, o que possibilita, teoricamente, a produção de provas técnicas de maior qualidade e confiabilidade, se colhidas em um prazo razoável (DI GESU, 2014).

Esses princípios não definiram em dias o que seria um prazo razoável para um processo se findar, tendo apenas, o Código de Processo Penal estabelecido prazo para a realização da audiência de instrução e julgamento, de 60 dias para o procedimento ordinário (art. 400 do mesmo código) e de 30 dias para o procedimento sumário (art.531 da legislação processual penal). Entretanto, tais prazos são impróprios, por estarem as varas judiciais abarrotadas de processos e dificilmente haverá data para a marcação de audiência dentro deles.

Como já foi explicado, os depoimentos prestados na fase indiciária devem ser repetidos em juízo, tão logo não poder o juiz fundamentar a sentença apenas nas provas colhidas no inquérito policial, conforme os dizeres do art. 155 do Código de Processo Penal. Assim, quanto mais tempo se passar para repetir a prova oral, maior será a propensão da incidência das falsas memórias e do próprio esquecimento.

É sabido que somos o que recordamos (DI GESU, 2014), dessa forma, convém explicar que a memória é consolidada durante o sono, em uma de suas primeiras fases, a de ondas lentas (SIGMAN, 2017). Continua Sigman (2017) que por meio de experimentos na escala celular e molecular, é possível saber que durante essa fase do sono, as conexões entre os neurônios no hipocampo e no córtex cerebral são reforçadas, estabilizando a memória. Ocorre uma onda oscilatória de atividade cerebral, ou seja, formam-se ciclos que se repetem em períodos de aproximadamente um segundo, no qual a atividade cerebral aumenta e diminui, essencial para a efetiva consolidação da memória.

Além da consolidação, a memória das pessoas também está sujeita a mecanismos de reconsolidação pelo cérebro. Como foi dito anteriormente, a consolidação ocorre durante fases muito específicas do sono, na fase de ondas lentas, na qual ainda não há sonhos, ocorrendo a fixação de tudo que se viu no passado recente. Já na fase onde há sonhos é que ocorre a consolidação de novas memórias, junto com outras estocadas por toda a vida, formando um banco de dados(NICOLELIS, 2013).

A formação da falsa memória ocorre justamente durante o mecanismo de reconsolidação, o qual acontece quando o indivíduo tenta se lembrar de algo, é que a memória sai do banco de dados do cérebro, sendo acessada pela consciência, onde será novamente armazenada neste banco de dados. É neste processo que, acidentalmente, o cérebro pode modificar a memória, formando uma falsa, pois ela não passa pelo lado lógico da mente (LISBOA; SANTI, 2017).

Esse mecanismo de reconsolidação da memória a torna vulnerável, sendo que, os processos criminais que dependem apenas de prova testemunhal e do relato da vítima, estão sujeitos a condenar um inocente. Ademais, é importante esclarecer que falsas memórias não se confundem com a mentira, pois esta última é um ato consciente da pessoa, que voluntariamente irá criar dados para o alcance de um objeto, que pode ser, por exemplo, o convencimento do Ministério Público para pedir a condenação do réu, convencendo também  o juiz que prolatará a sentença. Quem sofre uma falsa memória realmente acredita que àquela lembrança é verdadeira, e por isso, métodos de detecção de mentira, como o polígrafo, serão inúteis.

Após a explicação do neurocientista Mariano Sigman de que até a visão é ilusória e acerca da consolidação da memória, adverte Di Gesu (2014) que um processo que utiliza somente a prova testemunhal corre um grave risco de cometer um erro judicial, pois, o cérebro ao reter e conservar a memória pode transformar a realidade, chegando até a modificá-la.

Di Gesu (2014), citando Antônio Damásio (2001) na obra O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, relata haver uma interpretação, mais precisamente, uma versão reconstruída do fato original sempre que as pessoas se recordam dele, sendo que tais lembranças serão ainda mais distorcidas ao passo que envelhecemos e obtemos novas experiências.

O estudo das falsas memórias começou no início do século XX com experimentos realizados em crianças, com o objetivo de demonstrar a ilusão ou falsificação de lembranças. Tais experimentos tiveram início na França, no ano de 1900 e na Alemanha, em 1910. O estudo das falsas memórias em adultos só começou em 1932, na Inglaterra (DI GESU, 2014).

Di Gesu (2014) prossegue, citando a obra Viver mente & cérebro da psicóloga norte – americana Elizabeth Loftus, que foram o resultado de experiências com mais de 20 mil pessoas realizadas em laboratório, que os depoimentos de testemunhas presenciais de um crime estão sujeitos à sugestionabilidade, mormente não permanecerem as recordações inalteradas e ser a memória repetidamente reconstruída.

Acrescenta ainda Loftus que as falsas memórias são classificadas em dois tipos, sendo a primeira oriunda de fatos que não ocorreram e a segunda origina-se do ressurgimento de fatos que existiram, mas com alto grau de imaginação (DI GESU, 2014).

Esse primeiro tipo acontece por indução, por estímulos externos, que ocorrem por meio de perguntas dirigidas, implementando falsas informações acerca de um evento que realmente ocorreu, ou até, a inserção de uma memória totalmente falsa. Um exemplo foi o caso da Escola de Educação Infantil Base, localizada na cidade de São Paulo – SP (DI GESU, 2014).

O caso da Escola Base foi bastante noticiado pela mídia à época, e é considerada uma das maiores tragédias produzida pela televisão brasileira, haja vista que expuseram os donos da escola como culpados, sem ao menos ter sido concluído o inquérito policial, que no fim acabou sendo arquivado, mas que produziu consequências para os envolvidos por toda a vida. Tudo começou quando a mãe de Fábio, aluno da escola, ao vê-lo fazendo um movimento com o corpo de conotação sexual o interrogou, querendo saber onde ele havia aprendido tal coisa, a criança respondeu que assistira em um filme (DI GESU, 2014).

Então, a genitora de Fábio passou a interrogar o marido, a fim de saber se havia mostrado algum filme pornográfico a seu filho, tendo o pai do menino negado. Logo em seguida, a mãe voltou a conversar com o filho, fazendo perguntas sugestivas se ele teria visto tal filme na casa de um colega. O garoto, induzido pelas incessantes perguntas da mãe, acrescentou que fora levado numa Kombi dirigida por um dos proprietários da escola até uma casa. Sendo que lá uma mulher teria o beijado na boca enquanto outros homens tiravam fotos, inclusive, um desses homens seria o pai de seu colega. Além de ter sido beijado, o menino relatou que a mulher também passava pomada em suas nádegas (DI GESU, 2014).

A mãe de Fábio passou a relatar os abusos sofridos por seu filho a outras mães de alunos da escola, sendo que elas passaram a fazer perguntas sugestivas aos seus filhos, da mesma maneira que a mãe de Fábio, acreditando que os mesmos também teriam sofrido abusos sexuais. Então, os supostos abusos foram parar na delegacia de polícia e, por conseguinte, na mídia, expôs nacionalmente os suspeitos, o que lhes causaram danos irreparáveis (DI GESU, 2014).

O que deu azo à tamanha publicidade foi o fato do exame de corpo de delito realizado em Fábio ter constatado lesões na região anal, que poderiam ser fruto da prática de atos libidinosos, ou até mesmo de obstipação intestinal, com fezes endurecidas ou verminoses. Acrescenta-se que não foi sequer oportunizado aos suspeitos o direito de serem ouvidos no interrogatório, durante o inquérito policial. A investigação teve fim após 03 (três) meses, tendo se iniciado em 26 de março de 1994 e sido arquivada em 13 de julho do mesmo ano,  por não ter sido encontrado qualquer indício de materialidade. As vítimas chegaram a afirmar que havia fotos delas nuas e que nas casas dos suspeitos também haveria filmes pornográficos. Decerto, nada foi encontrado e provado. (DI GESU, 2014).

Paaz (2016) citando Stein (2010),explica que a segunda classificação das falsas memórias recebe o nome de memórias auto-sugeridas, as quais não dependem de estímulos externos, sendo o produto do próprio funcionamento da memória que irá alterar a lembrança.

Os tribunais brasileiros costumam atribuir significativo valor a depoimentos de vítimas e testemunhas que estejam coerentes, desde a fase indiciária até a judicial, isto é, sem apresentar contradições. Ocorre que não é cogitada a possibilidade dessas declarações terem sido induzidas por falsas memórias, desde o início da notícia crime. A indução também pode ocorrer no momento do reconhecimento pessoal, previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, pois, não é da prática forense obedecer aos mandamentos insculpidos neste artigo (DI GESU, 2014).

No entanto, o reconhecimento é feito nas delegacias de polícia e nos fóruns criminais da seguinte forma: por meio de fotografias ou por espelho mágico, estando atrás dele apenas um suspeito, ou até mesmo, sem o espelho mágico, colocando-se vítima e suposto algoz  frente a frente, sem ter sido a vítima convidada a descrever as características do imputado. Há uma tendência das vítimas se lembrarem, na verdade, da fotografia mostrada a ela, do que a imagem propriamente dita do autor do fato criminoso (DI GESU, 2014).

Continua Di Gesu (2014), trazendo apontamentos da obra A fase preliminar do processo penal: crises, misérias e novas metodologias investigativas, de José Nereu Giacomolli, que, após pesquisas realizadas nos Estados Unidos da América, concluiu-se que em 10 (dez) anos, de cada 40 (quarenta) condenações que possuíam o reconhecimento como único elemento de prova, 36 (trinta e seis) delas tiveram as autorias delitivas afastadas após a realização de exame de DNA. Significa dizer que a inobservância das formalidades legais poderá acarretar a indução de falsas memórias, viciando todo o processo, pois a vítima poderá manter o seu reconhecimento na fase judicial do processo, culminando possivelmente na condenação de um inocente.

Há teorias que explicam as falsas memórias, sendo que a melhor aceita é a da Teoria do Traço Difuso. Essa teoria explica que as pessoas tendem a processar informações de forma simplificada, utilizando o lado não lógico da mente, classificando a memória em de essência e em literal. A primeira delas é àquela que registra uma experiência, de forma genérica, e a segunda, é a que específica a informação da experiência. Por exemplo, a pessoa se recorda que almoçou em um restaurante, representaria a memória de essência. Já quando ela se lembra de que comeu uma lasanha no restaurante, estará especificando o fato passado, isto é a memória literal (DI GESU, 2014).

Registra-se que essas duas memórias são armazenas em separado, assim como as suas recuperações, que ocorrem de forma independente, apesar de serem processadas ao mesmo tempo. Por isso, a Teoria do Traço Difuso concluiu ser a memória de essência mais estável, e por isso, mais confiável, tão logo que as memórias literais passam pela natural desintegração dos fragmentos de seus traços, o que gera o esquecimento.

Um fator curioso é que as falsas memórias são oriundas justamente das memórias de essência, o que parece contraditório, pois a sua característica é de ser mais estável. Isso ocorre por conta das duas memórias terem origem em um mesmo fato, e sendo esquecidas as informações detalhadas da memória literal, esse fato original pode ser distorcido (DI GESU, 2014). A autora Di Gesu (2014) acrescenta que o mecanismo de esquecimento e de formação de falsas memórias é completamente natural e saudável, pois não seria possível viver lembrando-se de todos os dias de nossas vidas e com todos os seus detalhes, senão, seríamos loucos.

Sabe-se também que a atenção, a emoção e a memória estão fortemente interligadas. Destarte o cérebro receber informações a todo o momento e sendo necessário então, que algumas dessas informações sejam selecionadas para que possamos prestar atenção (FIORELLI; MANGINI, 2015). Esse mecanismo de seleção é feito por meio de células cerebrais especializadas, conhecidas por detectores de padrão (FIORELLI; MANGINI, 2015 apud HUFFMAN; VERNOY; VERNOY, 2003, p.125).

Percebe-se que, invariavelmente, a memória também será seletiva, pois as pessoas irão se recordar apenas daquilo em que prestou atenção. Da mesma forma funciona a emoção, eventos bastante traumáticos, a exemplo da prática de algum crime, a depender da violência praticada contra o ofendido, acarretará na distorção do depoimento dessa vítima. Pois, para essa pessoa, tal evento lhe provocou um enorme dano mental, e assim, quando for prestar seu depoimento, irá relatar um evento bastante ruim, diante de sua percepção, mais até do que realmente aconteceu. O mesmo ocorre com eventos agradáveis, lembranças boas serão potencializadas (FIORELLI; MANGINI, 2015).

Outrossim, é importante esclarecer que não se pretende afirmar serem todas as memórias falsas, mas sim, que existem falsas memórias que podem trazer sérios prejuízos às partes de um processo criminal, e em saber como identificá-las, propondo soluções a fim de evitar um dano maior (DI GESU, 2014).

A forma mais simples de tentar conter a formação das falsas memórias é evitar entrevistas tendenciosas, as quais o entrevistador, já convencido da culpa do réu, formula perguntas a vítimas e testemunhas, com o objetivo de obter as respostas que deseja, de modo a confirmar o que aparentemente já sabe, principalmente quando crianças figurarem como entrevistadas. Aliás, é comum se utilizar em entrevistas tendenciosas, perguntas fechadas, restritas, que são aquelas carregadas de informações prévias que não dão liberdade ao entrevistado de se expressar (DI GESU, 2014).

Di Gesu (2014) acrescenta que as entrevistas tendenciosas são realizadas com mais frequência na fase pré-processual, pois não há a observância obrigatória do princípio do contraditório, não havendo então, a participação da defesa do indiciado no momento da colheita do depoimento de vítimas e testemunhas em delegacias de polícia, Ministério Público, psicólogos, serviços de assistência à vítima, entre outros.

A indução por estímulos externos é uma das maiores responsáveis pela criação da  falsa memória, que pode ser obtida, justamente, a partir da entrevista. Nesse sentido, estudos psicológicos afirmam serem as crianças as mais propensas à formação de falsas memórias, pois, quanto mais nova é a criança, mais ela tende a satisfazer às expectativas do entrevistador, no intuito de não decepcioná-lo, ou de mudar a resposta quando é reperguntando sobre o mesmo ponto. Além de que, quando não sabem de algo sobre o qual lhe é perguntado, costumam usar a imaginação para responder (DI GESU, 2014).

Assim, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) formulou a Recomendação nº 33/2010, que disciplina o Depoimento Especial. Essa recomendação objetiva a criação de serviços especializados em processos judiciais, para a colheita de depoimentos de crianças e adolescentes vítimas, ou testemunhas de crimes, realizados por profissionais capacitados e utilizando os princípios básicos da entrevista cognitiva.

A entrevista cognitiva é preferível à tradicional, por produzir uma prova oral de melhor qualidade, com informações mais detalhadas e minimizando a indução de falsas memórias. A sua desvantagem está no maior tempo demandado para realizá-la e no treinamento de profissionais para aplicação da técnica (DI GESU, 2014).

São 04 (quatro) as técnicas da entrevista cognitiva que devem ser empregadas pelos entrevistadores, numa espécie de ordens a serem seguidas. A primeira delas consiste em “Relatar Tudo”: o entrevistador deve pedir ao entrevistado que relate tudo o que aconteceu, com todos os detalhes que se recorda, pois, qualquer pormenor pode ser decisivo para a investigação (ALBUQUERQUE; BULL; PAULO, 2014).

A segunda técnica é o “Restabelecimento do Contexto”: deve-se pedir à testemunha que recrie o cenário do crime, dando, inclusive, informações de seu estado emocional no momento em que este era cometido. Esse segundo passo é especialmente importante para entrevista com crianças, que necessitam ser provocadas para recriar o contexto do crime e assim, recuperar a memória (ALBUQUERQUE; BULL; PAULO, 2014).

A terceira é a “Mudança de Ordem”: pede-se à testemunha que relate o crime numa ordem inversa, geralmente do fim para o começo, pois, há pessoas que constroem um esquema mental de como sucedeu a ordem dos fatos até culminar no evento criminoso. Já a última técnica, a “Mudança de Perspectiva” consiste em pedir que a testemunha se coloque em outro lugar no momento do crime, para ter outra visão do que àquela da cena original,  com o fim de recuperar mais detalhes. (ALBUQUERQUE; BULL; PAULO, 2014).

Saindo das técnicas de entrevista, a autora Di Gesu (2014) relata terem ocorrido experimentos realizados nos Estados Unidos, que demonstraram haver diferenças no padrão de ativação do cérebro quando o indivíduo lembrava-se de uma memória verdadeira e de uma falsa, por meio de escaneamento cerebral, utilizando neuroimagens.

Num cenário ideal, seria possível submeter vítimas e testemunhas a tal escaneamento cerebral, a fim de averiguar a veracidade de suas lembranças. Entretanto, num sistema judiciário falido tal qual o do Brasil, essa possibilidade ainda é uma utopia. Então, como reduzir a formação das falsas memórias e consequentemente os seus danos ao processo penal neste país? Bem, soluções já foram dadas neste trabalho.

A primeira delas, e talvez a mais fácil, seria a observância do reconhecimento de pessoas e coisas conforme os ditames do artigo 226 do Código de Processo Penal, a fim de evitar vícios. A segunda seria a aplicação da entrevista cognitiva em todas as vezes em que fossem ouvidas vítimas e testemunhas, colhendo-se tais depoimentos em um prazo razoável, para se minimizar os efeitos do tempo e naturalmente, o esquecimento de lembranças (DI GESU, 2014).

Deve-se ainda alertar os profissionais envolvidos no processo judicial, como juízes, promotores, advogados, defensores públicos, delegados, médicos psiquiatras, psicólogos, entre outros, sobre a existência das falsas memórias e de como elas podem macular um processo criminal, destruindo as vidas das partes daquele processo, ou até mais, de suas famílias e amigos; e, em como evitá-las, aprendendo as técnicas da entrevista cognitiva, que renderão uma tutela jurisdicional do Estado de maior qualidade (DI GESU, 2014).

Sugere ainda a autora Di Gesu (2014) que as entrevistas colhidas na fase pré- processual, como àquelas realizadas em delegacias de polícia e em serviços de assistência social e psicológica, fossem gravadas, da mesma forma como já ocorre nos processos criminais, em sua fase judicial. Assim, possibilitaria o acesso pelas partes processuais dos depoimentos prestados desde o início da persecução penal, proporcionando a comparação de depoimentos, e se foram observadas as técnicas corretas de entrevista para evitar a indução de falsas memórias.

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A partir do exposto, resta claro que a busca da verdade real no processo criminal nada mais é do que um mito, tão logo que a verdade é relativa para cada um dos sujeitos processuais, e que a persecução jurisdicional penal do Estado depende de provas contundentes para se condenar. Sendo que essa condenação, para que seja livre de vícios, depende da observância, no curso do processo, dos princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório, presunção de inocência, in dubio pro reo, entre outros.

Ademais, é a prova testemunhal cabalmente a mais utilizada nos processos criminais, por ser a de mais fácil disposição, levando-se em conta a precariedade em que são produzidas o restante das provas, a exemplo dos exames de corpo de delito, e da falta recursos estatais para a melhor produção de provas técnicas. Não obstante a fácil utilização da prova testemunhal, é a prova oral, justamente, a considerada a mais frágil de todas.

O argumento justifica-se pela lentidão do Poder Judiciário de tocar o processo, seguindo as fases ordenadas pelo Código de Processo Penal, em regra, e de julgá-lo, culminando no natural esquecimento das lembranças das partes processuais no momento de colheita de seus depoimentos. E pior, além do esquecimento, a prova oral está sujeita a incidência das falsas memórias, tanto as auto sugeridas, como as induzidas.

Como foi mencionado, o surgimento das falsas memórias é um mecanismo natural do cérebro, e faz parte da realidade humana. Ocorre que a presença de falsas memórias dentro de um processo criminal tem consequências bastante drásticas, como a de condenar inocentes, ou de acabar com a reputação ou com a profissão de pessoas que nem chegaram a responder um processo judicial, como foi o caso dos donos da Escola de Educação Infantil Base.

Para evitar a formação das falsas memórias e melhorar a prestação jurisdicional do Estado, a adoção de algumas medidas podem ser o suficiente. Como sugestão, devem-se seguir os passos do reconhecimento formal de pessoas e coisas presente no artigo 226 do  CPP, melhorando também as formas de entrevista dos profissionais que lidarão com as partes do processo, ensinando e treinando as técnicas da entrevista cognitiva a esses profissionais, considerada a melhor forma de entrevista, por se obter mais informações e de melhor qualidade, além de diminuir as chances de formação de falsas memórias.

Também se pode adotar a sugestão da autora Cristina di Gesu, de gravar os depoimentos prestados pelos sujeitos processuais também na fase pré–processual, obtendo, consequentemente, uma prova de melhor qualidade, que servirá como um dos elementos de convicção do magistrado para prolatar a sentença.

REFERÊNCIAS

 

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SANTI, Alexandre; LISBOA, Sílvia; ORTIZ, Juan. Os grandes mistérios do cérebro. SUPER Interessante, 375. ed. São Paulo, Junho de 2017.


Dr. Wander Barbosa

Wander Barbosa, CEO do escritório Wander Barbosa Sociedade de Advocacia. Master Of Law Direito Empresarial. Pós Graduado em Direito Civil e Processo Civil. Pós Graduado em Direito Penal. Especializado em Recuperação Judicial e Falências pela Escola Paulista da Magistratura.

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